sexta-feira, 12 de julho de 2013

Decisões

Depois de mais de metade da minha vida ligada à protecção de animais, e nos últimos 6 anos maioritariamente à esterilização de animais que vivem na rua, acabei por conhecer e tornar-me próxima de pessoas extraordinárias.
Pessoas fortes, determinadas, que não recearam dedicar parte das suas vidas aos animais de ninguém. Ao lado dessas pessoas fui crescendo, aprendendo, e algumas delas assumem hoje um papel muito importante na minha vida. São as minhas amigas "dos bichos" é certo, e foi junto delas que encontrei o conforto do ombro que não me iria julgar por se tratar "só de um cão".

Não saberei nunca definir esse conceito "só um cão", porque para mim tal coisa não existe.

O Doc foi submetido a nova cirurgia, que correu bem. Foi com ansiedade que aguardei o resultado das análises, que iriam identificar o novo nódulo, e ditar o veredicto quanto à limpeza cirúrgica do já removido anteriormente.
Entretanto estudava e aprendia coisas interessantes, como por exemplo que os mastócitos estão envolvidos na reacção aos processos alérgicos e que contêm histamina no seu interior. Comecei a lembrar-me da história clínica do Doc. Quando veio para minha casa, vinha com uma enorme otite, que lhe provocou semanas de dor e limpezas constantes. Aos 5 meses começou a apresentar reacções alérgicas constantes, e fez vários tratamentos, até que optei por lhe fazer um teste específico que viria a especificar as fontes das suas alergias e a permitir imunoterapia.

De repente, dei por mim a lembrar todos os momentos mais importantes desde que ele chegou à minha vida. É incrível o efeito que estes processos têm em nós. Já tínhamos falado em quimioterapia, mas não queria pensar nisso. Queria pensar que tudo iria ficar bem com a cirurgia. Os resultados, porém, obrigaram-me a pensar nisso. O nódulo da coxa era também um mastocima de grau II. O tecido removido após a limpeza cirúrgica apresentava, apesar dos seus 4cm (mais do que o recomendado), margens sujas - o que significava que continuavam a existir células tumorais no local.

Relembrei os nossos passeios na praia, tão frequentes. Relembrei os primeiros treinos, as pistas de agility, a forma tão especial que ele tem de se relacionar com outros cães. Vi várias expressões do seu focinho, aquela em que me diz que precisa de alguma coisa, outra que faz quando fica chato e quer a todo custo que preste atenção, e a mais doce de todas quando dorme profundamente.
Lembrei-me das 28 vezes seguidas, contadas, quando era cachorro, em que o tirei do sofá enquanto lhe dizia "chão", até que ele acabou por me vencer pelo cansaço, e ficou a dormir comigo.
Pensei tanto nas suas orelhas a abanar enquanto corria freneticamente apenas parando para comer um qualquer lixo interessante que se lhe apresentasse.
Recordei com um sorriso a nossa primeira viagem em trabalho, quando, numa herdade algures no Alentejo, e ainda com pontos da cirurgia de castração, correu desenfreado sem ver a piscina, e ali caiu num susto.
Não pude evitar uma gargalhada ao recordar aquela vez em que decidiu comer-me umas cuecas, e acabamos o dia a explorar o conteúdo do seu estômago através de uma endoscopia de emergência, enquanto o veterinário brincava. Umas reveladoras letras s-e-x também eram parte do conteúdo.
Todos estes sustos e eventos agora perdiam dimensão, através da janela de tempo. Curioso. Espero um dia escrever aqui sobre o susto dos mastocitomas, e do medo dos tratamentos, do pavor de ver o Doc a entrar numa espiral de sofrimento sem retorno sem nada poder fazer, com um sorriso e uma tranquilidade que só o tempo sobre os finais felizes nos traz. Quem sabe?



Tantas pessoas que foram importantes para nós durante os anos... Umas ficaram por perto, outras foram seguindo com as suas vidas, mas todas são sempre lembradas com carinho.
Os amigos são importantes. Quimioterapia.
Fui reler as pesquisas, todas recomendavam radioterapia para este tipo de tumores. Em Portugal não há. O custo de uma unidade para permitir tratamentos por radioterapia é demasiado elevado para se justificar fazê-lo para medicina veterinária. Os amigos. Informei-me. Em Espanha também não se faz radioterapia. Já se fez, mas já não se faz. Local mais próximo: Paris.

O pior para mim são, sem dúvida, as decisões. Ter que tomar decisões que irão afectar, provavelmente de forma irreversivel, a vida do Doc, sem saber qual a mais correcta. É a incerteza que me mata por dentro aos poucos.

Ter uma veterinária que se tornou uma amiga ao longo dos anos, poder estar numa clínica em que nos sentimos em casa, e contar com o apoio de todos que ali trabalham, é muito importante. Para mim tem sido. Consultei especialistas. Em Portugal e em Espanha, graças aos amigos. Todos recomendavam quimioterapia.

Mas eu...
Eu estava tão insegura sobre o caminho a seguir. Nunca fui a favor do prolongamento da vida em sofrimento. Não quis ser egoísta com o Doc, retirando-lhe a qualidade de vida que hoje tem, em prol de um tratamento que lhe poderá apenas causar mau estar. A minha mente não conseguia desligar da decisão premente, o meu coração não aguentava com tanta angústia e decidi desligar.
Optei por não fazer a quimio, enfiar a cabeça na almofada à noite, e aproveitar ao máximo todos os dias com o Doc. Prometi que lhe ia dar ainda mais de mim cada dia.

1 comentário:

  1. Ainda bem que escreveu este blog.
    Estou a passar exactamente pelo mesmo processo e acho que já sei tanto sobre mastocitomas, desgranulação de mastócitos, tratamentos e cirurgias, como um veterinário :)
    A minha cadela é uma labradora que fará 4 anos em Novembro - para mim é uma cachorra, uma bebé - e apareceu-lhe uma pequenina zona de alopécia numa perna em Março. Em Maio retirou e era um mastocitoma grau II.
    Fez quimio - diferente da do Doc, pelo li no seu blog - até 16 de Agosto. Parou as sessões e 3 semanas depois apareceu mais um na cabeça. Fez citologia e parece que é menos agressivo. Amanhã será operada de novo. Depois começará um novo tratamento que me deixa cheia de receios. A quimio também deixou, mas acabou por não ser nada dramático.
    Gostava imenso de trocar um email consigo, acha que podemos falar por essa via? o meu é acvala@gmail.com
    Espero que o Doc supere tudo muito depressa e não tenha mais nenhum.
    Continue confiante, vai ver que terá este amigo por muito mais anos.
    Cristina

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