sábado, 22 de fevereiro de 2020

A inigualável nobreza do ser.

Só nós duas sabíamos dos sonhos que tínhamos. Só nós as duas dentro do pequeno Mundo que é a nossa família.

Só nós duas trocámos olhares de cumplicidade, num entendimento tão simples quanto bonito. E agora esses olhos, que me seguem para todo o lado mas não me indicam o caminho a seguir, esses olhos que sei que irei perder em breve e que levarão consigo uma (boa) parte de mim.

Tantas vezes disse que não fui eu que "te fiz" quando comentavam - tanta e tanta gente que comentava - o boa que eras, com as pessoas, mas especialmente com os outros cães. Tantas vezes te pedi desculpa por te colocar demasiadas vezes em situações difíceis, tantas vezes tive medo de "te estragar" quando te "usava" na reabilitação de cães, que não deixa de ser curioso que, quando tudo isto começou, foi assim. Foi naquele fim de tarde, em que as duas percorríamos uma rua de Matosinhos ao encontro de uma cliente, em que te ia "usar" uma vez mais para me ajudares. Aquela vez em que te enganaste. Disse-o tantas vezes, respondendo à pergunta "Como é que sabe que ele(a) não vai morder?" - a Tashi diz-me. É a Tashi que me diz. E tantas vezes vi aqueles olhares incrédulos, ao ver como ela, efectivamente, me dizia. Naquele fim de tarde, enganou-se, enganou-me. Ainda assim, confiando, pondo-se numa situação de risco, e ia ser mordida. Salvei-a. Pelo menos daquela vez pude salvá-la. Foi o primeiro indicador que algo não estava certo com ela.

Vale-me uma super veterinária que acredita na minha intuição, vale-me que me apoie e me escute a toda a hora, e valem-me todos aqueles que se têm envolvido na recuperação dela.

Só nós duas no sofá, olho para ela e tento aquecê-la, ela olha-me e não me orienta. Só queria que me orientasse mais esta vez. Os sonhos que sonhámos as duas, o espaço que sempre demos uma à outra sem nunca deixar de estar coladas, a nobreza do seu ser, do seu sentir, do seu olhar.
Só nós duas na luta pela vida que eu sonhei e partilhei com ela, em todos os momentos.
Só nós duas no monte, mesmo que rodeadas por outros seres (sempre), só nós duas.

Ao apoio que tem chegado de diversos pontos, dos inesperados, dos menos esperados, e dos que estão sempre ali, a Tashi só tem a dizer que cumpriu a sua missão. Que não me deixa só, que nunca estarei sozinha. Só nós as duas e os nossos sonhos, e os que ficaram por cumprir.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Do Inverno mais frio da vida...

Das patinhas geladas pendentes do sofá.
Das noites encostada a ti, aquecendo-te com o calor que vem do coração.
Do teu olhar sempre atento, seguindo-me para todo o lado mesmo quando o corpo já não deveria acompanhá-lo e o faz.
Dos ossos que começam a mostrar-se onde antes havia aquela gordurinha gira que sempre me fazia ter-te de dieta e te fazia estar sempre à espera de mais comida.

Os dias já não são o que eram, o Inverno está mais longo do que nunca apesar dos dias de sol. O frio das tuas patinhas funde-se com as minhas mãos, naquele gesto que antes te fazia reagir com cócegas. O teu (mais) doce rosnar está cada vez mais suave, mas é sempre um sinal de que ainda estás aí.

Sorrio quando te murmuro que estou aqui, que estarei sempre aqui e que confiarei, como sempre, nas tuas decisões. Choro quando penso que os dias bons poderão não mais chegar, que não verei mais as tuas corridas e que não terei mais os teus abraços. Aceitas com carinho todos os meus ataques ora de comida em punho, ora munida de seringas e pomadas para te cuidar. Agradeces-me com o olhar e percebes o meu medo.
És tão grande, sempre o foste. És muito melhor do que eu.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Montanhas russas

Há quase uma semana que sinto que estou numa montanha russa, cheia de altos e baixos.
Foi tudo tão fácil contigo, Doc.

Dos dias passados em telefonemas apressados com amigos da Tashi e veterinários, das noites apertadas sem dormir, ou a dormir muito depressa para chegar na manhã seguinte rápido ao Hospital, do trabalho que continuo a marcar sem parar porque não quero dar-me esse tempo, muito pouco fica. Ficam os momentos com ela. Ficam as dores da cada notícia má e a euforia de cada pequena vitória.

A Tashi está internada há quase 7 dias. Das preocupações e ansiedades das primeiras sessões de quimioterapia veio uma infeção oportunista, que me tirou o chão, que nos tirou a calma necessária para enfrentar um monstro deste tamanho.

Vi-a a desfalecer. Levei-a em braços para o Hospital. Estóica, a minha cadela perfeita não deu sinais nenhuns. Valeu-me o olho treinado e a intuição de que ela não estava bem, dentro do mais-ou-menos que estavam a ser os seus dias.

A dor da ausência por causa de uma viagem de trabalho antes do seu internamento. A angústia de a deixar por algo que preparava há meses para NÓS. As memórias daquele fim de semana de caminhada, em que as suas corridas me despertaram uma gargalhada e decidi filmar algo que andava há anos para filmar. Sempre a dizer: para a próxima. Quem diria que a próxima não ia chegar? Quem me poderia ter avisado que o meu cão perfeito, a minha companheira de alma, poderia estar, silenciosamente, heroicamente, a desenvolver algo nela? Onde estava o meu olho clínico então?

Dizem que o luto tem várias fases... Pois eu ainda não fiz o luto e já as passei a todas, várias vezes. a rejeição, a raiva, a tristeza profunda. A única coisa comum a todas as fases, sabem que mais? A dor no peito, tão enorme que não seria capaz de descrever, nem por escrito.

Sou extrovertida, partilho tudo. Nestas coisas, partilho a informação, escondo sempre o que sinto. Excepto quando me escorrem as lágrimas pela cara descontroladamente quando atendo um cliente. E aí sinto que preciso de ter tempo e espaço, e que não consigo, por vinte-e-um mil motivos que agora não interessam nada. Porque o tempo já passou e há CONSTANTEMENTE decisões a ser tomadas. E ela não fala. Não fala comigo, e por mais que lhe peça, não pode decidir.

O medo. O medo das decisões erradas.
A perda é nada quando comparada com este enorme medo. Este gigante que habita em mim nos momentos angustiantes com os (meus) seres. Deixá-la ir parece-me perfeito. Parece-me o fim de algo, e isso neste momento soa bem. Porque tudo é melhor do que este remoinho de vento em que não se tem tempo para comer nem para respirar, não se pára para sentir, e não se consegue sonhar.

Os sonhos, de uma outra vida.
Tão pouco, este tempo, que tivemos.

Tantos aqueles que ajudaste, que não consigo ver justiça nisto. Tantas pessoas, tantos cães. É preciso contar? Meu cão perfeito.

Quantas vezes terei que me despedir de ti?
Todos os dias, quando te visito pela última vez e te massacro, seja com comida forçada ou a limpar-te os pelos, quando me suplicas com o olhar para voltar para casa e te tenho que negar, me despeço de ti. Como se fosse a última vez. Todas as manhã, percorro os escasso kms a pensar no que vou ouvir, quantas vezes já imaginei o "aguarde um bocadinho" seguido de uma entrada para um qualquer gabinete para me explicarem que terias partido. Quantas marcas isto deixa em mim, e quantos momentos de euforia aparecem de seguida quando te vejo a aparecer, cauda de abanar tímido, ou me mandam entrar para te encontrar deitada e me cumprimentares com um levantar de cabeça ligeiro?
Qual o certo, qual o errado?

Tomei todas as decisões, todas foram acertadas porque segui a intuição e o coração, escorados por opiniões clínicas sustentadas. E então, porque sinto esta dor?

Mufo meu, espera por mim. Que decidirei sempre e arcarei com o peso da decisão por ti. Contigo.