segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Voltar

Já há muito que queria voltar a estas páginas, mas a vida não foi deixando.
Senti necessidade de me abstrair de todo o peso deste tema, e tentar ignorá-lo, ainda que por poucos meses.

Voltamos hoje, o Doc e eu, depois de quase 2 semanas após a última cirurgia. Aquela que decidi ser a última.
Não decidi baixar os braços da luta, não me interpretem mal. Decidi lutar de outra forma: mantê-lo tão feliz quanto possível enquanto por este mundo estiver.

O cancro não dá tréguas ao corpo do Doc, e aparece nas mais variadas formas: nódulos, sinais, e outros relevos na pele. Uns são duvidosos, outros são quase de certeza tumores, outros não.
E que posso eu fazer, mais do que adaptar-me a esta realidade? Não posso continuar a operar o Doc a cada sinalzinho, bump ou lump que apareça.

Então decidi que só caso não pudesse evitar é que o operaria de novo. Assim foi. Um novo nódulo, ulcerado, a sangrar, obrigou-me a levá-lo do novo à mesa de cirurgia.
No processo todo, perceber tanta coisa nesta vida que normalmente deixamos de lado, que vai perdendo importância, que damos como garantido, e que quero ter para sempre.
O Doc a correr feliz na praia, o Doc enroscado na sua mantinha quentinha, o Doc a ladrar incessantemente a pedir-me qualquer coisa, os seus olhinhos a implorar com brilho e pupilas dilatadas qualquer coisa. O Doc para sempre comigo.
E vai estar. De uma forma ou de outra, vai estar.

Decidi. Decidi não lutar mais contra as suas próprias células, que se revelaram já mais fortes do que ele, eu e todos os que lhe querem bem. Não conseguimos. É impossível retirar todos os nódulos e sinais - mastocitomas e melanomas - sem o tornar num passador canino.

O Doc ainda não tem 8 anos. E todo este tempo, foi muito mais para mim do que um cão. Muito mais do que uma companhia. Foi um motor, que me levou a estudar comportamento canino. Um fogo, que me levou a acordar mais cedo, fazer mais exercício, ser mais saudável, caminhar mais, apreciar mais o outdoor, apanhar mais chuva. Foi um calor que me ensinou a gostar de estar na paz do lar. Foi tanta coisa. Tudo isto e muito mais.

O Doc, eu, o cancro, e como tudo nos afecta hoje não me deixa escrever mais.
Até um dia.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Sombras...

Mais do que o triste tempo que se tem feito sentir nas últimas semanas, com céus escuros e tormentas várias, ventos fortes, e agitação marítima, descobri finalmente que a nuvem que paira sobre mim é outra.

Contrariamente àquilo em que quis acreditar, não há céu limpo depois do cancro. Há dias parcialmente nublados, e muita muita, mesmo muita ... Sombra.
É à sombra desta doença que vivemos, não só o Doc e eu, mas também os que nos são próximos. A situação criou uma nuvem demasiado grande no nosso céu, e as sombras são tão frequentes nos dias escuros quanto nos claros.

O Doc continua bem, não nos podemos queixar. Os nódulos pequeninos que tem não têm crescido, e às vezes desaparecem totalmente. Conto-os e inspecciono-os várias vezes.
Normalmente é nos passeios que damos que vislumbro levemente uma variação no pêlo, que tento logo atribuir ao movimento, ou às cores do dia, à movimentação das nuvens, às sombras. Quando vou ver com mais detalhe, mais de perto, não era nada.
Hoje foi mais do que nada. Um novo nódulo, do mesmo lado que os outros, sensivelmente do mesmo tamanho. E aquele passeio longo pelo parque, enquanto agradecia mais uma vez a melhoria do tempo e a oportunidade de desfrutar de algum ar livre com os cães e com o Miguel, tão agradável, ficou de outra côr. Tento manter o optimismo, tento relativizar, pensar que é só mais um, que não é nada mas na verdade... é tudo. É tão tudo.

Numa conversa, aqui há dias, tentava explicar a alguém porque é que o Doc e eu somos... o Doc e eu. Acabei por simplificar tudo, dizendo que há cães que só nos aparecem uma vez na vida, e que esse é o Doc. O Doc que mudou a minha vida, o Doc que moldou a minha vida à dele, e que quando desaparecer deste mundo, muita coisa mudará também. Não quero essa mudança. Mas não quero que sofra. Quero ver muitos cães a fazer parte da minha vida, ainda, e que todos sejam especiais. Como o Cusca é. Quero amá-los, respeitá-los, aprender com eles, viver com eles. Mas também queria o Doc connosco.

Então, a sombra é grande e tão presente. Tento ser positiva, ignorá-la, não mostrar o quanto me escurece a vida. E consigo, às vezes, por breves instantes. Consigo sonhar, cada vez mais alto, até sentir novamente o peso dela. Da sombra que está sempre connosco. E hoje quando vi o nódulo novo, que pesada a senti. Senti que os meus braços se baixavam, apeteceu-me ficar ali, no meio do parque, só nós, a visualizar-me a mim própria como num filme, a câmara passava por cima, filmava-nos ao fundo, e rodava, para nos filmar nos 360º possíveis, muito depressa. Foi como senti aquele nódulo. Foi assim. 360º e de volta aonde sempre estivemos. Aqui, um para o outro - Doc e eu - nesta luta onde se vencem algumas batalhas, mas se perdem outras, e onde se encontram sentimentos e emoções desconhecidos, medos insuportáveis, o coração tão apertado de impotência.
E, novamente, as dúvidas. As questões sobre o que fazer e o que não fazer. A razão a olhar para os dados e a tomar decisões calculadas, a emoção a querer tomar conta, os sonhos a parecerem cada vez mais e mais distantes, e ... o Doc a olhar para mim, alheio a tudo, tentando compreender a lágrima que me escorre pelo rosto e a mão que treme enquanto o afaga. Aqueles olhos que não se explicam, aquele focinho de mil expressões, das quais leio já algumas centenas. E esta diz-me: "O que se passa? 'Tás triste?" - Estou, meu querido. Sinto parte de mim desaparecer quando imagino o que se vai passar. Mas já passou, está tudo bem, um biscoito, uma brincadeira, e seguimos caminho, numa felicidade aparente.

Estou triste, hoje. Vou buscar forças ali e já volto.