sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Alguma coisa mudou.

Não sei o que foi. Mas o cancro já não está tão presente em mim. Consigo já dedicar-me a outras coisas, em pleno, sem ter aquele zumbido sempre na cabeça.
O Doc continua na mesma, e não há nada que me faça pensar que posso descansar tranquila. No entanto, alguma coisa mudou. As sessões de quimioterapia mais espaçadas também contribuem para afastar a névoa que a ideia, por si mesma, carrega.
O Outono chegou, e é uma das minhas épocas preferidas do ano. Posso voltar às caminhadas na praia, agora livre de gente com os seus perigosos lanches. Já tenho marcação na agenda para domingo. Praia de manhã e voltamos à rotina. O Doc vai correr, não lhe vou pôr o açaime, vou antes brincar com ele e ter a certeza que não se distrai com um qualquer lixo que apareça. Faça chuva ou faça sol, lá estaremos, mas tudo indica que chova.

O Doc não gosta de chuva, e agora, no final de tarde de uma sexta-feira chuvosa, o seu comportamento indica isso mesmo. Estiveram ali os dois a brincar, ele e o Cusca, rebolando no chão e dando os saltos mais amplos que a minha pequena sala permite. E é nesta alturas que gostaria de ter uma casa maior. Não podemos, quando chove, dar os nossos longos passeios no parque, e muitas vezes ele recusa-se a sair pela porta do prédio. Mas eu, eu adoro o Outono, quer chova, quer não.
São as cores, os odores, as folhas secas no chão. Os amarelos que se tornam verdes nas ervas, e os verdes que se tornam amarelos nas folhas das àrvores. Tudo muda! A humidade no ar que dá um novo cheiro a tudo, o vento que traz mais a maresia até cá a casa, o orvalho pela manhã. Mas não gosto particularmente de chuva.

Muitas depressões cíclicas têm o seu início no Outono. Eu funciono ao contrário. Há menos gente na rua, menos gente nas praias e no parque. Podemos, por isso, eu e os cães, andar mais à vontade.
O cancro permanece comigo, e com o Doc, imagino, embora tenha uma vã esperança que só exista, agora, na minha cabeça. Tenho vindo a mentalizar-me que estes eventos importantes da vida servem, no mínimo, para reflectirmos sobre a importância das coisas, e acredito, sinceramente, que possam trazer algo de bom às vidas que tocam. Quando soubemos, foi um choque.
Acho que posso agora fazer um balanço do processo: lágrimas, desespero, impotência, estudo, recolha de informação, investigação, consultas várias, lágrimas, desespero, o peso da tomada de decisões, a tomada de decisão em si, as alterações à rotina, a preocupação aumentada, o carinho, o amor, os tratamentos, os curativos em casa, a medicação, os abraços, as brincadeiras, as preocupações, as veias, a comida, os facilitismos, a preocupação, as saudades antecipadas, a ansiedade, o terror, o medo, os carinhos, as sestas a dois, a habituação, a adaptação, e aqui estamos. Numa vida com cancro mas já mais adaptada. A vida continua, e o seu andamento acelerado contribui para uma maior capacidade de adaptação. Somos seres humanos, habituados a evoluir, e nisso estou. A mentalizar-me que esta mudança não tem a ver com despreocupação, com desleixo, nem com menos amor, menos medo.
Continuo a ter medo, mas alguma coisa mudou. Aprendi a viver com o cancro do Doc, e espero que isso também mude em breve, e que seja necessária, da minha parte, uma nova adaptação - desta vez à nova vida do Doc, cancer free.

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